Por Silvia Generali da Costa, psicóloga e assessora em saúde do SIMPE-RS
Ontem o site G1.globo noticiou a morte do adolescente João Pedro, ocorrida durante uma ação policial conjunta das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. O pai do menino disse, em entrevista comovente, que o filho sonhava em ser advogado. João Pedro foi atingido dentro de casa.
Há cerca de um mês, o mesmo site anunciou a morte do técnico de enfermagem Thiago Andrade da Silva, que morreu em Jundiaí (SP), aos 35 anos, após dias internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Segundo sua esposa Ana Paula de Andrade, seu sonho era trabalhar no local” – afirma o site.
O que eles tinham em comum? Muito. Sonhos, uma vida pela frente, familiares que os amavam, a cor da pele e a partida prematura.
Thiago virou uma estatística. João Pedro logo vai se tornar uma também. João Pedro não foi vítima do acaso, de um acidente, não estava no lugar errado na hora errada. Estava em casa na hora em que devia estar e fazendo o que os adolescentes fazem: jogando games, com amigos. Thiago também estava onde deveria: trabalhando na profissão dos seus sonhos, ajudando quem precisava. Como puderam morrer desta forma?
Não vou discorrer aqui sobre o massacre que os jovens negros sofrem na periferia nem sobre a escalada de mortes pelo COVID-19 no Brasil. Muito material e excelentes pesquisas já existem sobre o tema. O que proponho nesta semana é refletirmos sobre o sentimento de impotência.
O pai de João Pedro talvez tivesse pensado que seu filho era estudioso, não passava o dia nas ruas, não estava envolvido com o tráfico e nem com nada ilegal, que não era briguento, que todos gostavam dele e que, apesar de ser apenas um adolescente, sabia se cuidar muito bem. Ana Paula, a esposa de Thiago talvez tenha pensado que o marido tinha equipamentos de proteção e recursos hospitalares adequados para exercer seu trabalho e que sabia, melhor do que ninguém, como evitar a contaminação. Mas nada disso adiantou. Estão mortos.
O que o pai de João Pedro poderia ter feito? O que a esposa de Thiago não viu? Nada que estivesse ao alcance deles. Nada mudaria o fato de que João Pedro era um adolescente negro de periferia. Nada mudaria as políticas públicas que não protegeram suficientemente Thiago do Coronavírus.
Alguns dirão que o Estado não se importa. Gostaríamos de acreditar que há uma indiferença do poder público, mas não. O Estado se importa e muito, tanto que produz, intencionalmente, esta situação. Ou você quer acreditar que todos os policiais das diferentes forças acordaram num belo dia e resolveram sair disparando tiros de fuzil em comunidades? Que vestiram a farda com a intenção de matar jovens negros inocentes? Não creio. Muitos policiais ingressam na corporação com o genuíno interesse de defender a população. E os enfermeiros e médicos que morrem no atendimento a pacientes de COVID-19, alguém seria capaz de supor que foram relapsos? Ineficientes? Descompromissados ao lidar com a própria vida e a dos outros? Não acredito.
Impotência. É o sentimento que surge quando fizemos tudo o que podíamos e não foi o suficiente, quando percebemos que não pudemos evitar alguma coisa terrivelmente ruim, quando nosso filho adolescente é morto por quem deveria lhe proteger e quando enfermeiros morrem enquanto o Presidente da república faz piadas sobre a pandemia.
Individualmente, estamos fazendo tudo o que podemos. Nos protegemos do COVID-19 lavando as mãos, usando máscaras e nos isolando em nossas casas. Contra tiros de fuzil, não saímos quase à noite, evitamos as comunidades e não pensamos naqueles que lá vivem. Com estas ilusões nos sentimos protegidos, mas a ilusão só faz aumentar nossa impotência e nosso despreparo quando a realidade nos é jogada no rosto.
O sentimento de impotência, nestas questões sociais tão relevantes, só se combate no coletivo. Precisamos nos importar com João Pedro e com Thiago como nos importamos com “os nossos”. João Pedro e Thiago também são nossos.